Pixação e Desperdício

Casa da Caramuru em 13 de fevereiro de 2010

Se você herdasse uma tela de um artista renomado (um Renoir, por exemplo), ou um a jóia delicadamente esculpida em ouro, deixaria esses bens jogados na rua, expostos à chuva e ao vandalismo? Certamente, não.
Quando na década de 80 um comerciante local adquiriu a Casa da Carmuru, legada à Ribeirão Preto pela Família Villa-Lobos, para transformá-la em um mero depósito, a sociedade civil se manifestou. A insensibilidade de um homem prático, que via apenas um bom imóvel onde estava uma das construções mais belas da cidade, foi brecada pelo pedido e pela concessão de tombamento do bem pelo conselho de patrimônio estadual (CONDEPHAAT).
O local, com sua fina arquitetura e suas parede revestidas de pinturas feitas à oleo, tinha tudo para um dia tornar-se um centro histórico. Mas, depois do decreto de proteção, foi deixado de lado.
O proprietário, paciente como todos os que tem dinheiro aplicado em jogo, apostou que a casa cairia antes de alguma iniciativa. E quase acertou.
Supervalorizou o local, não vendeu a interessados em reformar a tal casa velha. Ignorou as ordens da promotoria para cuidar do local. Por fim, acabou perdendo o imóvel por multas e impostos atrasados.
Desde 2009, o Estado e a Prefeitura estão em um empurra-empurra para ver quem fica com a responsabilidade - de acordo com a Justiça, quem tomba e quem abriga o bem tem a obrigação de cuidar do patrimônio, tal qual acontece com qualquer outro objeto público.

Vista da área interna da Casa da Caramuru - o pedaço de pano provavelmente foi deixado pelo arrombador, que deve ter ficado desapontado ao perceber que o lugar não era mesmo habitável
Nesse meio tempo, foi-se embora o que restou do teto - a cobertura prometida pela secretária de Cultura de Ribeirão, Adriana Silva (cheguei a publicar entrevistas dela sobre isso umas duas vezes no jornal Gazeta de Ribeirão, uma delas você pode conferir logo abaixo), não saiu até hoje.
E a situação, que já não era das melhores para um restauro, só fica pior: esta semana constatei que a fachada estava pichada e que o tampão que fechava a entrada está arrombado(a porta há muito já foi furtada).

Entrada da Casa da Caramuru após arrombamento - em vez da porta ornamentada original, havia um tampão de construção para fechar o lugar

É de partir o coração de quem torce por aquele lugar ou que, pelo menos, sabe o valor artístico desse imóvel. Os relevos nas paredes estão rachando, as pinturas (das paredes que restaram) são quase invisíveis.

No hall de entrada é possível ver  resquícios dos ornamentos pintados na parede

Antes do tombamento, uma parte da casa já havia sido desmembrada para dar espaço a um bar (pintado de amarelo e vermelho). Agora, com a pixação, tenho cada vez menos esperanças de que os governos tomem providência.
Prefeitura e Estado agem como o ex-proprietário, tentando minimizar os custo e esperando que tudo desabe logo de uma vez. Uma obra dessas demanda tempo e verbas, mas os louros nem sempre podem ser colhidos antes das próximas eleições.
A Casa da Caramuru fica a alguns quarteirões da Câmera Municipal, e nenhum vereador se digna a tomar a bandeira da conservação para si (e olha que alguns estão lá há mais de 20 anos, ou seja, desde que o tal tombamento saiu).Os conselhos municipal e o estadual de patrimônio também fazem vistas grossas para um problema arrastado de uma gestão para outra.Quem mora em Ribeirão, no final, nem repara no monumento perdido para o tempo e o descaso.
Nós congelamos o uso com o tombamento (que talvez trouxesse alguma conservação) e assistimos de camarote o lugar se desfazer, sendo que volta e meia alguém ainda dá uma ajudinha extra, como é o caso do tal pixador sem noção.  
Torço veementemente para que que a Justiça aplique logo as multas pesadas e condizentes com a perda que prometeu - e não criem ilusões: o dinheiro disso não sairá do bolso dos governantes que estão dando uma de desinteressados.
A verdade é que, no fundo, nós (comerciantes gananciosos, sociedade de engajamento passageiro, políticos desinteressados, justiça lenta e pixadores) somos todos culpados pela destruição da Casa da Carmuru.

Jogamos fora um item valioso da nossa história e não me arriscaria em dizer que os homens de visão e cultura do passado devem se arrepender amargamente de deixar algo precioso para esta cidade.

________

PS. A tempo: Soube que no Theatro Pedro II, outro patrimônio de Ribeirão Preto, já se discute o uso do teatro de ópera para colações e formaturas... Pensando um pouco no estado das carteiras das escolas públicas e até mesmo das particulares, chego a sentir calafrios. Não que os jovens sejam todos vândalos, mas a julgar pelos exemplos que damos a eles com os outros bens da cidades, não creio que eles se importem muito com o cuidado com o que é de todos. Será que alguém nesta cidade têm mais alguma ideia genial?

________


ABAIXO, UMA MATÉRIA MINHA PUBLICADA NA GAZETA DE RIBEIRÃO QUE CONTA UM POUCO DA HISTÓRIA DESSE PATRIMÔNIO (assim que encontrar o original, escaneio e coloco aqui para você conferirem também as fotos):

Patrimônio Restaurado

Gazeta de Ribeirão - 15 de agosto de 2009 - Reportagem de Danielle Castro


A Prefeitura e o Estado começarão neste semestre o restauro da chamada Casa da Caramuru, imóvel de Ribeirão Preto tombado desde 1988 e que corre risco de desabar.
O Estado, o município e o proprietário estão sendo processados pelo Ministério Público por deixarem que um patrimônio reconhecido se deteriorasse.
Como dinheiro público não pode ser investido em espaços particulares, o Estado estuda uma via jurídica para desapropriar o local (como o atual dono possui dívidas tributárias, o local poderia ser tomado como pagamento, mas a questão ainda não está definida). Mesmo sem o trâmite jurídico encerrado, o projeto de restauro deve ser apresentado este mês para que o investimento necessário seja captado o quanto antes.
A proposta é que o local seja colocado sob a responsabilidade da Prefeitura e seja usado para fins culturais – uma parte do local deve ser usada como museu para contar a história do bem e da colônia italiana que migrou para Ribeirão. Quem passa hoje pelo local pode ver tábuas pregadas onde as portas caíram.
A secretaria de Cultura, Adriana Silva, se reuniu esta semana com técnicos municipais e o Conselho de Defesa do Patrimônio Histórico, Arqueológico, Artístico e Turístico do Estado (Condephaat) para discutir a questão do restauro. “Temos um grande impasse jurídico, mas vamos manter o foco no restauro”, disse Adriana.
O telhado terá que ser refeito e as estruturas serão sustentadas trecho a trecho para evitar desabamentos durante as fases de limpeza e restauração.
Segundo o secretário de Planejamento e Gestão Pública, Ivo Colichio, o projeto deve indicar se o trabalho poderá ser feito apenas por técnicos da Prefeitura ou se haverá necessidade de uma licitação para contratar o restauro. O recurso para a obra deve vir do Estado, mas dependendo do custo, o município pode entrar com uma contrapartida e até solicitar ajuda de empresários. O trabalho deve contar ainda com a parceria da ONG Viva Cidade. Os proprietários da casa foram procurados, mas estavam em viagem.

Casa da família Villa-Lobos
A Casa da Caramuru pertenceu à família Villa-Lobos e foi tombada como exemplar da arquitetura do período de expansão do café na região de Ribeirão Preto, de acordo com os registros do Arquivo Público da cidade. Marcada pela presença de imigrantes italianos, a construção possui paredes com afrescos de caráter cenográfico, mas como não há assinaturas, nenhum pintor está identificado ainda.
Na época do tombamento, o local possuía inquilinos. Hoje, apenas uma parte do prédio está alugada e no local funciona o bar de Gilson Silva, 53 anos. “Estou aqui há oito anos, mas o bar existe há uns 50. Se não tivesse esse boteco aqui já tinham invadido tudo. Deveriam colocar qualquer coisa nessa casa, poderia ser uma biblioteca ou até uma dessas agências de bancos coloniais”, disse Silva. A presidente do conselho municipal de patrimônio, Cláudia Morrone, disse que a expectativa em relação à casa é grande e que o restauro ainda é possível apesar dos danos.